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“Não é o lúpus que me define”: A história de Rita Jorge

10 Mai 2024 - 10:13

“Não é o lúpus que me define”: A história de Rita Jorge

Rita Jorge sempre foi uma criança e uma jovem saudável. No entanto, aos 26 anos, um cansaço invulgar, dores nas articulações e uma mancha na cara levaram-na a procurar ajuda e a chegar ao diagnóstico de lúpus eritematoso sistémico, uma doença autoimune crónica que pode afetar vários órgãos.

Hoje, tem 48 anos e vive em Lisboa com a família. A doença não a impediu de ser mãe, desejo que concretizou há sete anos. No Dia Mundial do Lúpus, Rita conta ao Viral como é viver com a doença há 22 anos.

Sentia dores e cansaço, mas foi uma mancha no rosto que levou Rita ao médico

Com 26 anos, Rita começou, de repente, “a acordar com dores nas articulações”, que “não desapareciam”. Mas, como “iam melhorando ao longo do dia” e não a impediam de se levantar da cama e continuar a sua vida normalmente, não lhes deu importância.

Na mesma altura, notou que a pele à volta das unhas estava inflamada, mas, mais uma vez, não ficou alarmada. 

Além disso, conta, “também sentia cansaço, mas não valorizei os sintomas, nem sequer os associei uns aos outros”.

O que a preocupou foi uma mancha que lhe surgiu no rosto e que teimava em não desaparecer. “Se não fosse a mancha da cara, até ia demorar mais tempo a ir ao médico”, admite.

Rita foi ao encontro de um dermatologista que, assim que a viu, colocou logo a hipótese de se tratar de lúpus. Mas antes de se confirmar a suspeita era necessário fazer exames e uma análise mais completa.

“Entretanto, como passou algum tempo entre marcar e não marcar outra consulta, as manchas começaram também a espalhar-se para a área do decote, para as costas e para os braços”, relata.

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Depois das consultas, da análise dos sintomas e de uma biópsia, Rita teve “a confirmação de que tinha lúpus eritematoso sistémico”.

Este não é o único tipo de lúpus. Ana Rodrigues, reumatologista e professora na NOVA Medical School (NMS), explica ao Viral que “o lúpus é uma doença autoimunecrónica e rara que faz com que o organismo faça mal a si próprio, ou seja, o corpo “começa a produzir anticorpos que lutam contra as suas próprias células”.

Há dois tipos de lúpus: o cutâneo e o eritematoso sistémico. No caso do cutâneo, adianta a médica, trata-se de uma doença autoimune que afeta só a pele, por isso, “é diagnosticada e orientada por um dermatologista”.

Por outro lado, “o lúpus eritematoso sistémico é uma doença autoimune que atinge mais do que um órgão”, como, por exemplo, “a pele, os rins, os pulmões, as articulações, os intestinos, o coração e o sangue”, esclarece Ana Rodrigues. 

Não se tem conhecimento de “todas as razões pelas quais um indivíduo em particular desenvolve lúpus”, mas sabe-se que “as causas são multifatoriais”, aponta a médica.

Fatores ambientais, “suscetibilidades genéticas”, ser mulher e até determinados “triggers [gatilhos], como infeções”, podem contribuir para o aparecimento da doença.

Como é diagnosticado o lúpus?

Do ponto de vista de Ana Rodrigues, pode ser difícil diagnosticar o lúpus, sobretudo o eritematoso sistémico. Isto porque, muitas vezes, os sintomas iniciais – como “dores nas articulações, dores nos músculos e o cansaço – são “inespecíficos” e típicos de várias doenças.

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Além disso, “cada doente pode ter um conjunto de manifestações únicas”. A reumatologista exemplifica: “No doente X, o lúpus pode afetar as articulações, os músculos e o sangue. No doente Y, pode afetar os rins, as articulações e a pele”.

Para Ana Rodrigues isto é um problema, porque o facto de os sintomas serem inespecíficos pode levar tanto ao atraso no diagnóstico, como ao diagnóstico errado.

“O lúpus não tem nenhum exame que, por si só, permita o diagnóstico. É a integração dos sinais e sintomas do doente, mais os exames complementares que nos permitem esse diagnóstico”, clarifica.

Por isso é que, na perspetiva da médica, é importante que estes doentes sejam vistos por “um médico treinado e a reumatologia é uma especialidade que se dedica (e tem treino) na identificação de pessoas com lúpus”.

“Demorei a processar o facto de ter uma doença crónica”

Para Rita foi muito difícil receber um diagnóstico de lúpus aos 26 anos: “Fiquei muito assustada com o diagnóstico. Tinha ideia de que era uma doença muito grave, eventualmente até mortal. Demorei um bocado a processar o facto de ter uma doença crónica”, revela.

Neste momento da vida de Rita, o apoio dos familiares, amigos e médicos que a acompanharam foi muito importante.

Depois de receber o diagnóstico, os médicos tranquilizaram-na, garantindo que “há tratamento e que se pode ter qualidade de vida”. 

“Fui muito bem acompanhada em termos médicos. A dermatologista que me fez o diagnóstico encaminhou-me para um médico interno e a partir daí esse passou a ser, até à altura da sua reforma, o meu médico de referência. Atualmente, sou seguida por um reumatologista”, relata.

Rita conta que, ao longo dos anos, “a doença teve altos e baixos”. Teve “fases de remissão”, em que não teve sintomas e, depois, nas fases ativas do lúpus, em que teve outras complicações, também começou a ser seguida por outras especialidades.

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Qual é o tratamento para o lúpus eritematoso sistémico? 

Ana Rodrigues explica que o lúpus é caracterizado por fases de remissão (em que a doença está adormecida) e por fases de surto (em que os órgãos dos doentes são afetados).

Por um lado, “há pessoas que têm uma fase de surto inicial e nunca mais voltam a ter, andam com a doses baixas de medicação e, às vezes, ficam com a remissão tão sustentada que, passados muitos anos, é possível parar toda a medicação”.

Mas também pode haver “doentes que têm um surto inicial, passam anos e anos sem atividade e depois voltam a ter”, e “há outros que estão sempre on and off e que temos de assegurar remissão sustentada com fármacos cada vez mais potentes”, exemplifica.

Em termos de medicação, para tratar o lúpus, são utilizados “fármacos imunossupressores”, que, no fundo, “baixam as defesas do organismo”, para impedir “a hiperreatividade” provocada pela doença.

“Alguns medicamentos servem para induzir remissão, outros são de manutenção” e estes “devem ser dados cronicamente para evitar surtos inflamatórios da doença”, esclarece Ana Rodrigues.

Para Rita, os tratamentos em fases ativas da doença foram longos e pouco agradáveis. “Demoram a fazer efeito, é muita medicação, toda ela com efeitos secundários”, descreve.

Em 2009, teve um surto particularmente impactante: “Fiquei completamente disforme com a dose de corticoides que tive de tomar durante um período relativamente longo”.

Rita não foi a única doente a sofrer com efeitos secundários causados por estes medicamentos. Ana Rodrigues admite que, principalmente há uns anos, por não haver outras opções, “os corticoides eram dados em doses altas durante algum tempo, causando efeitos secundários”.

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Hoje em dia, apesar de, por vezes, ainda ser necessário “dar doses altas de corticoides”, já é possível reduzi-las rapidamente, “porque temos outras armas que conseguem manter a remissão ou induzir a remissão, sem causarem tantos efeitos adversos”, explica a especialista.

No entanto, reconhece a médica, “todas as terapêuticas imunossupressoras baixam as defesas do corpo e há sempre mais risco de infeção”. Mas hoje esse risco é menor.

Além da medicação, “propomos sempre que os doentes façam evicção do sol”, porque está comprovado que “a exposição solar aumenta o risco de atividade da doença”, refere a especialista.

Essa foi logo a primeira recomendação passada a Rita: “Fui sensibilizada para a questão de que os raios ultravioletas são os principais inimigos do lúpus”.

Assim, no verão do ano em que foi diagnosticada, “tive de evitar a praia e mesmo no dia a dia tive de usar protetor solar”, relata. 

Hoje, acrescenta, “faça chuva ou faça sol, tenho sempre de usar protetor nas áreas expostas e nas alturas críticas, uso chapéu e evito o sol”.

Outro conselho dado a Rita foi “dormir bem” e evitar “o grande inimigo do sistema imunitário” – o stress

Por isso, “devia dormir bem e ter um estilo de vida calmo, coisa que, por acaso, não acontece muito”, admite.

“Noto que quando ando mais stressada, seja por trabalho ou outros problemas, o lúpus dá logo sinal de si. Normalmente são crises de stress, de ansiedade, que me fazem espoletar os surtos de lúpus”, conta.

Segundo Ana Rodrigues, isto tem uma justificação. O cortisol “é o anti-inflamatório natural do nosso corpo”, expõe. Por sua vez, “o stress, sobretudo, associa-se a alterações do sono diretamente relacionadas com perturbações da produção de cortisol”, prossegue.

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Por isso, se o doente dormir mal, “se não fizer a produção adequada de cortisol, cujo pico é durante a noite, tem mais risco de o lúpus entrar em atividade, porque o seu protetor natural fica perturbado”, conclui.

Além disso, refere a professora da NMS, como os doentes com lúpus “têm um ligeiro aumento de risco de ter eventos cardiovasculares, trombose e AVC, nós aconselhamos sempre a modificação dos estilos de vida, como: interromper o tabaco, ter uma alimentação equilibrada e fazer exercício físico regular”, 

Segundo surto: Sete anos depois, o lúpus de Rita afetou os rins

Em 2002, quando foi diagnosticada com lúpus, Rita precisou de tomar “muita medicação, muito à base de corticoides” para tratar as manchas da pele e as dores nas articulações.

“Demorou algum tempo, mas, com a medicação, acalmou e depois estive, durante um período relativamente longo, sem sintomas”, revela.

Sete anos depois, em 2009, Rita começou a “sentir um mal-estar” e algum inchaço nas pernas e nos olhos.

“Voltei ao médico e foi-me diagnosticada uma nefrite lúpica, ou seja, o lúpus tinha voltado a acordar e, neste caso, a atacar o rim”, conta.

Nesta fase, Rita passou a ser acompanhada também por um nefrologista: “Foi complicado, porque, mais uma vez, deixei passar bastante tempo até finalmente ir ao médico, porque não eram dores” muito intensas.

Rita admite que teve de “fazer um tratamento bastante chato”, mas conseguiu, mais uma vez , “ultrapassar” outra fase ativa do lúpus.

A doença não impediu Rita de ser mãe

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A ideia de que as mulheres com lúpus não podem ter filhos já é antiga, mas ainda há quem acredite nela. Segundo Ana Rodrigues, esta crença permanece, porque “as mulheres com lúpus, no passado, como precisavam fazer medicamentos contraindicados na gravidez, eram desaconselhadas a engravidar”. 

Além disso, nessa altura, “algumas mulheres estavam com sequelas nos pulmões e nos rins e a gravidez também acrescentava risco”, acrescenta.

Contudo, “hoje em dia, nada disto é verdade”, frisa a especialista. Sabe-se que “se a mulher estiver a tomar medicamentos que podem ser continuados durante a gravidez, se estiver em remissão há pelo menos seis meses e se não tiver lesão grave de órgão, pode claramente engravidar”, assegura.

O que está recomendado, além disso, é que as doentes “sejam sempre acompanhadas por uma equipa multidisciplinar, para haver uma identificação precoce se houver atividade da doença durante a gravidez, ou um ajustamento daquilo que for necessário”, refere.

Rita é a prova disso mesmo, de que uma mulher com lúpus pode ter filhos. Aliás, quando foi mãe, “já tinha lúpus há bastante tempo e já tinha 41 anos”, sublinha.

Durante a gravidez continuou a ser acompanhada pelos médicos que já a seguiam e passou a ser vigiada também em ginecologia e obstetrícia.

“Foi uma vigilância muito apertada, com muitos exames e foi-me ajustada a medicação para não interferir com o feto”, conta. 

Rita teve um parto normal, que correu bem, e também pôde amamentar.

Desde o pós-parto que Rita tem a doença ativa

O primeiro surto do lúpus de Rita foi há 22 anos, o segundo foi há 15 e, há sete anos, depois de ter o filho, começou novamente a ter sinais de atividade da doença.

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“O que é facto é que desde que fui mãe comecei a ficar sempre instável. E, neste momento, estou outra vez com a doença ativa, tenho uma nefrite lúpica”, revela.

Não há forma de saber se a causa do surto foi o pós-parto, mas Rita desconfia que seja mesmo esse o motivo. “É provável, por causa da privação do sono e do stress de ser mãe pela primeira vez e mesmo talvez devido a questões hormonais”, pondera.

Neste momento, está a ser tratada e “a aguardar o resultado de uma biópsia renal, para ajustar melhor a medicação”. 

“Nunca deixei de fazer nada por ter lúpus, não é o lúpus que me define”

Rita admite que o diagnóstico de lúpus teve um grande impacto na sua vida. Descobrir que tem uma doença crónica foi um choque e não fácil lidar com as fases de surto. 

Em 2002, o impacto que o lúpus teve na pele de Rita afetou-lhe a autoestima e, anos depois, “não estava à espera” que os seus rins também fossem afetados. 

Em termos profissionais, reconhece que pode ser difícil gerir a saúde e o trabalho. Na altura do diagnóstico, “trabalhava na área social, sobretudo com jovens,” e “era um trabalho mais stressante”.

Atualmente, “coordena serviços educativos de vários museus em Cascais” e consegue gerir melhor o stress profissional

Viver com lúpus “implica ter de ir a consultas regulares”, mesmo em fases de remissão. “E quando a doença se manifesta, faço consultas com muita regularidade, exames, e isso implica ausentar-me do trabalho”, reconhece. 

Mas, como nunca ficou internada muitas vezes, nem durante muito tempo, Rita sente que o lúpus não prejudica a sua vida profissional.

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Exige mais de mim, puxo muito por mim, canso-me muito, mas faço tudo por manter” o trabalho. “Não quero ficar em casa, nem nunca quis desistir de trabalhar”, confessa.

Quanto à vida pessoal, partilha da mesma visão. “O que me disseram quando me diagnosticaram – e que eu, de facto, verifico – é que, com a doença bem vigiada e com a medicação, podemos ter qualidade de vida”. 

Rita admite que “há períodos mais complicados” e já teve “surtos bastante complicados”, mas quando são ultrapassados e considera que tem uma vida normal. 

“Nunca deixei de fazer nada por ter lúpus, não é o lúpus que me define”, declara. 

“De facto, é terrível, é um choque receber um diagnóstico de uma doença crónica. É uma doença muito traiçoeira, mas hoje pode-se ter qualidade de vida”, prossegue.

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Por isso é que Rita acredita que “é importante ter um médico de referência em que se confie, tomar a medicação e descansar”. 

“Mesmo para os médicos é um quebra-cabeças”

Como doente com lúpus há 22 anos, Rita tem a perceção de que “a maior parte das pessoas têm um grande desconhecimento” em relação à doença.

“As pessoas não percebem esta questão de o nosso próprio sistema imunitário nos atacar. É difícil explicar isso, até eu tenho dificuldade em fazê-lo”, admite.

Apesar de ser uma doença muito estudada, não se conhecem muito bem as causas e, na opinião de Rita, é também por isso que “não se consegue chegar à cura”. 

“Mesmo para os médicos é um quebra-cabeças”, afirma.

Além de haver ainda muitas pessoas que acreditam que uma mulher com lúpus não pode ser mãe, há outros mitos sobre a doença que persistem. Rita refere, por exemplo, a ideia de que o lúpus é uma doença hereditária

“Não é verdade. Pode haver predisposição genética, mas no meu caso isso nem se verificou”, aponta.

De facto, continua, “quando fui diagnosticada, uma das primeiras coisas que o meu médico fez foi chamar os meus pais e a minha irmã para ver se detetavam os anticorpos e não se verificou”.

Há muitos casos em que se verifica uma predisposição genética, mas isso “não significa que os filhos de uma pessoa com lúpus tenham lúpus”, defende.

Por outro lado, Rita também notou, ao longo dos anos, que a comunidade médica no geral não está assim tão informada.

Os médicos que a seguiram e que continuam a acompanhá-la estão, do ponto de vista de Rita, “muito bem informados e coordenados entre eles”. 

“Há algumas especialidades, como a nefrologia, em que os médicos estão mais familiarizados, são médicos que estão muito habituados e têm um grande conhecimento sobre a doença”, reconhece.

Da mesma forma, “a reumatologia, a dermatologia e a medicina interna” também são especialidades que Rita considera que estão bastante informadas sobre o lúpus.

Sem contar com essas especialidades já é diferente. “Há um certo desconhecimento e receio, nem se aventuram, chutam logo para o meu médico de referência”, conclui.

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Lúpus

10 Mai 2024 - 10:13

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